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O Haiti é aqui

Formação profissional contribui para integração de haitianos em Dourados

Dez anos após terremoto que devastou o país, haitianos recomeçam a vida no Brasil com capacitação oferecida pelo Campus Dourados.
por Vinicius Vieira publicado: 04/03/2020 12h30 última modificação: 04/03/2020 16h43

"A grandeza épica de um povo em formação
Nos atrai, nos deslumbra e estimula"
(Haiti - Caetano Veloso e Gilberto Gil)

Cerca de 80 estudantes do Haiti fizeram curso de Introdução à Informática – Fotos: CRC/Dourados

Em janeiro de 2010, o Haiti era atingindo pelo terremoto que destruiu grande parte do país caribenho, matando mais de 300 mil pessoas e deixando outras 300 mil feridas. Uma das consequências do abalo sísmico, considerado o quinto maior da história, foi o agravamento das condições de miséria que, por sua vez, levou a um intenso fluxo imigratório. Muitos haitianos deixaram a terra natal em busca de sobrevivência em outras regiões do planeta.

Segundo o estudo Diagnóstico Regional de Migração Haitiana, das Organizações das Nações Unidas (ONU), o Brasil é o país sul-americano com maior número de imigrantes do país. A estimativa feita pelo órgão é que, entre 2010 e 2016, mais de 67 mil haitianos tenham se estabelecido em território brasileiro. 

Um desses residentes é Jean Kenson Jolne, 29, presidente da Associação Municipal dos Haitianos em Dourados (MS), que veio para o Brasil em 2016 com o intuito de estudar Agronomia. "É um dos países mais avançados na área", define.

"Depois da tragédia, quem era rico virou pobre, a natureza acabou, e muitos começaram a viajar para o Brasil", explica o haitiano Jean Jolne.

Diferentemente da maioria dos cerca de 600 haitianos que residem atualmente em Dourados, Jean - que é formado em Línguas e Comunicação - não atribui a vinda ao Brasil ao desastre natural, mas explica que o terremoto tornou impossível o retorno ao Haiti.

"Até o terremoto, a razão para que a maioria dos haitianos viesse para o Brasil era o estudo. Depois da tragédia, porém, quem era rico virou pobre, a natureza acabou, e todos tiveram que procurar uma nova saída. Muitos então começaram a viajar para o Brasil", explica.

Estabelecido em Dourados, Jean tornou-se intérprete no município e fundou a Associação para facilitar a integração social, cultural e profissional dos imigrantes na região. 

A partir do levantamento das necessidades e expectativas dos compatriotas na região, Jean decidiu entrar em contato com o Campus Dourados do Instituto Federal de Mato Grosso do Sul (IFMS). A proposta era capacitar os imigrantes na área de Informática, um dos eixos de atuação da unidade.

"O mundo é muito avançando tecnologicamente, então hoje todo mundo precisa de Informática. Como presidente da Associação achei que era necessário, muitos queriam e veem nisso a oportunidade para construir uma nova vida no Brasil".

Nova Vida - Foi com o curso de Capacitação Profissional em Informática, ofertado pelo IFMS entre janeiro e fevereiro e com carga horária de 60 horas, que Figot Gerissaint, 23, e Astime Marianne, 21, viram as perspectivas de integração e qualidade de vida melhorarem.

"O curso me fez sentir acolhido. A parceria entre a Associação e o IFMS mostra que as instituições públicas estão pensando em nós", diz o aluno Figot Gerissaint.

O mecânico Figot define o curso como 'uma benção', e ressalta a importância das instituições públicas no processo de adaptação e crescimento dos imigrantes. "O curso me fez sentir acolhido. A parceria entre a Associação e o IFMS mostra que as instituições públicas estão pensando em nós".

Astime, que trabalha como cabeleireira, também destaca o trabalho conjunto entre a entidade e o IFMS, além de apontar as perspectivas de aprendizado contínuo que a formação despertou. "Quero aprender mais ainda. Fico muito feliz de ter participado desta iniciativa, em especial por ser gratuita. Espero que o curso tenha bons resultados no futuro".  

Outros 78 haitianos participaram do curso. "A maioria dos estudantes dessas primeiras turmas tem entre 25 e 30 anos, todos com ensino médio completo e, em alguns casos, até superior completo, que estudavam e exerciam diferentes profissões no Haiti, de medicina à contabilidade", explica o professor Evandro Falleiros.

O curso é oferecido por meio do Centro de Recondicionamento de Computadores (CRC), projeto coordenado por Falleiros em parceria com o Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações (MCTIC).

O professor esclarece que este primeiro módulo é a introdução a uma formação mais ampla, que poderá contribuir para a inserção socioprofissional não só dos imigrantes, mas de estudantes e trabalhadores da região. "A intenção é que o projeto construa um itinerário formativo que aprofunde, em outros módulos de 60 horas, temas relacionados ao Movimento Maker, como automação de processos e impressão 3D, por exemplo", comenta.

"Ao se comunicar, parece  que estão brigando. Abordamos isso,  até para que eles não sejam julgados pelo estereótipo", diz o professor Willerson Campos.

Além de aspectos da formação técnica, o curso também abordou temas como postura profissional, ambiente de trabalho e consciência cultural. Muitos dos alunos estão empregados em frigoríficos e no setor da construção civil, e alguns já se tornaram até pequenos empreendedores.

O professor Willerson Campos, da área de Administração, explica que o conteúdo abordado incluiu desde currículo e postura em entrevista de emprego até inteligência emocional e redes sociais como aliadas para imagem profissional.

"A postura comunicativa foi um aspecto muito importante. Nas relações interpessoais, eles possuem uma forma de comunicar que, para quem está de fora, pode parecer que estão brigando. Trata-se apenas de uma conversa normal. Abordamos isso, para que eles sejam julgados pela capacidade e não pelo estereótipo", diz.

  • Alguns estudantes levavam filhos às atividades do curso para não faltarem às aulas- Foto: Equipe Campus Dourados
  • Curso abordou elementos e atividades relacionadas ao Movimento Maker- Foto: CRC/Campus Dourados
  • Capacitação de 60h tratou de introdução à informática para cerca de 80 haitianos- Foto: CRC/Campus Dourados

Aprendendo ao ensinar - Um dos aspectos destacados por Falleiros é que, ao participar da formação dos imigrantes, foi preciso repensar a metodologia de ensino, diante das dificuldades e limitações impostas pelo contexto e pela pouca familiaridade que muitos têm com o português.

"Foi uma experiência extremamente gratificante, que me fez acordar para muitas questões pedagógicas que irei rever e adotar com outros alunos", afirma o professor Evandro Falleiros.

"Foi preciso dar aula de um jeito muito diferente, com metáforas, adaptação de termos técnicos e uso de sinônimos. Foi uma experiência extremamente gratificante, que me fez acordar para muitas questões pedagógicas que irei rever e adotar com outros alunos", afirma.

A psicóloga do campus, Carla Capilé, relata experiência semelhante. Pela primeira vez, a profissional trabalhou desenvolvimento pessoal e interpessoal com uma turma formada por estrangeiros e que, neste caso específico, encontra-se em situação social e emocional fragilizada.

"Fiquei emocionada por fazer parte deste curso, deste processo de abrir portas para que eles tenham outra oportunidade. Muitos vieram para o Brasil deixando tudo para trás e percebi que, na fala deles, há o sonho de voltar e tentar reconstruir o que ficou no Haiti, um emprego, uma família, relações afetivas", analisa.

O professor de Informática, Jónison Santos, que abordou sustentabilidade e recondicionamento de computadores, destaca a construção coletiva do conhecimento a partir do companheirismo e da convivência com os estudantes que, muitas vezes, levavam os filhos para as aulas.

"Na medida em que a máquina funcionava, parecia que havia sido um gol do Brasil na Copa do Mundo", relata o professor Jonison ao relembrar a comemoração dos haitianos ao montar um computador.

"A vontade deles de querer aprender, de crescer, de ganhar um dinheiro extra, de reconstruir a vida, tudo isso me emocionou. Eles se ajudavam, compartilhavam o que um havia entendido e o outro não. Aprendemos e crescemos juntos", relata.

Um episódio com Jónison, em particular, ilustra o envolvimento demonstrado com a aprendizagem. Uma das tarefas durante o curso era desmontar e montar um computador, sem a presença do professor. Depois de algumas frustrações iniciais, em que o equipamento não ligava, o grupo passou a celebrar em conjunto o correto cumprimento da tarefa. 

"Depois que montavam a máquina, todos eles ficavam em volta para ver se estava tudo certinho e se ela ia ligar. Quando ligava, eles começavam a celebrar, bater palmas. Na medida em que a máquina funcionava, parecia que havia sido um gol do Brasil na Copa do Mundo", relembra.

A entrega dos certificados aos primeiros formados pela iniciativa foi realizada no último dia 29, na sede da Associação dos Haitianos, em Dourados.

CRC - O Centro de Recondicionamento de Computadores em Dourados é uma das oito unidades desse tipo no Brasil. A iniciativa faz parte do programa "Computadores para Inclusão", desenvolvido em parceria firmada com o MCTIC

O aporte de recursos é de R$ 1,373 milhão, para custeio de bolsas, equipamentos e prestação de serviços. A meta é qualificar 800 profissionais em dois anos, prazo de vigência do projeto.

Em janeiro, cerca de 160 pessoas foram capacitadas. Além de haitianos, alguns venezuelanos e demais estudantes de Dourados participaram. A nova turma do curso de Capacitação Profissional em Informática, que tem duração média de três semanas, começou na segunda-feira, 2. 

São abordados temas como inclusão digital, apresentação dos principais softwares utilizados no mercado da região, introdução à automação de processos por meio do Arduíno, Impressão 3D e recondicionamento de computadores.

Nota: As entrevistas concedidas pelos estudantes haitianos foram intermediadas e traduzidas por Jean Jolne